Uma longa viagem, 2011.




Há mais de trinta anos foi editada a lei que concedia a anistia a todos que cometeram crimes políticos entre setembro de 1961 e agosto de 1979, semelhante à Ley de Pacificación (1983), à Ley del punto final (1986), e à Ley de Obediencia debida (1987) na Argentina, em que alguns foram absolvidos e outros absolveram a si próprios. Em abril de 2010, a lei da anistia brasileira foi julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 153, sob a relatoria do Ministro Eros Grau, ele mesmo preso e torturado em 1972, quando filiado ao Partido Comunista Brasileiro.

Em 11 de maio de 2012, concorrentemente à estreia, no circuito oficial, do filme “Uma longa viagem”, de Lucia Murat, foram nomeados os sete integrantes da Comissão da Verdade, instituída pela Lei 12.528/11 com o propósito de examinar e esclarecer as violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988. Justifica-se uma comissão da verdade sem caráter punitivo? Justifica-se.

No Brasil de 2012 ainda existem lacunas e até mesmo desaparecidos políticos, como mostram os restos mortais encontrados na Vala de Perus no cemitério Dom Bosco em São Paulo. Conta a historiadora Maria Aparecida de Aquino que, quando algumas das ossadas foram identificadas, uma das mães relatou ter ganhado enfim a permissão de chorar: até então, sentia-se obrigada a aguardar pelo retorno do filho perdido, em estado de suspensão e tortura.

A Comissão, apesar de todas as críticas que merece, a começar pelo nome pretensioso e pela composição de seus membros, tem o propósito de efetivar o direito à memória, concretizado pela disponibilização ampla de dados e documentos à sociedade e aos pesquisadores. Um direito de acesso às fontes materiais e imateriais. Assim como o filme de Lucia Murat, não se trata de um processo de revanchismo – mesmo porque a anistia prosseguirá hígida e intocada – mas de um longo e delicado processo de reflexão e de cicatrização histórica. No limite, trata-se de permitir que pessoas vivas no país de 2012 possam ter a oportunidade de saber o que aconteceu com seus entes e pares, concedendo-lhes dados para pensar por que as coisas aconteceram da forma como aconteceram.

É sobre este processo intenso e convulsivo dos anos setenta do século XX que trata “Uma longa viagem”. Como observou o ator Caio Blat, algo de biográfico que subjazia nos filmes da diretora – como em “Que bom te ver viva”, de 1989 – pulou para primeiro plano e se escancarou, concebendo algo de novo, a começar pela estrutura duplamente triádica da obra: de um lado, a instigante ideia de uma diretora, um ator, um personagem. De outro, a composição narrativa disposta na forma de um triângulo escaleno: cada um dos três irmãos como vértices que olham e observam os outros dois a partir de ângulos próprios, particulares.

Há um caçula, Heitor, há um mais velho, Miguel, e há Lúcia, militante política no momento mais crítico da ditadura brasileira. Para evitar que Heitor enverede pelo caminho escolhido pela irmã, que termina presa, os pais o enviam para uma longa viagem, enquanto o mais velho se torna médico e mestre em seu ofício. Pessoas vivas e intensas cada qual a seu modo, de um lado bastante diferente da vida. 

O filme começa a ser rodado logo depois da morte de Miguel. Seria ele um foco, um ponto fixo de serenidade, convergência e equilíbrio para Lúcia e Heitor, cada um deles um personagem em ebulição? Talvez. Mas a vida tem lá as suas idiossincrasias e o que resulta da perda do irmão mais velho é muito mais do que uma homenagem privada: trata-se de um relato rico, maduro e inovador, que foge com bastante competência das inúmeras armadilhas envolvidas na narrativa de uma trajetória familiar por um de seus membros.

Aquilo que faltou em “Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios”, de Beto Brant (2011), é justamente o maior trunfo da obra de Lúcia Murat: a montagem parece ser o eixo estruturante de “Uma longa viagem”, pautada por um ponto de partida levemente heterodoxo: a edição das cartas de Heitor à sua família. Trata-se então de um roteiro? Sim, à maneira de uma “intenção de narrativa”, para usar a expressão de Evaldo Mocarzel. Então, estamos diante de um documentário? Parece que sim: parte-se de fontes escritas (cartas), de fontes orais (depoimentos) e da memória pessoal para retratar uma história que, para ser contada, para ser entendida, precisa de um percurso, de uma opção editorial, de verbos e de conectivos.

Há um arco dramático em evidência, o do percurso fundacional de Heitor, entre seus 18 e 28 anos, e há uma digressão necessária, a prisão de Lúcia. O contraste entre a existência coercitivamente estática da irmã e a existência insanamente dinâmica do caçula é temperado pela ausência de Miguel. Lúcia Murat, de maneira perspicaz, percebe que deve relatar sua experiência como contrapeso necessário da história principal: a viagem do irmão mais novo. Ainda assim, não há necessariamente uma oposição entre a militante política presa e o viajante: a errância do rapaz é uma busca espiritual, mas, também, um ato de protesto, de oposição. Seu deslumbre com o mundo não o aliena, não o afasta.

E como contar a história, de que maneira? A partir da leitura de cartas, de depoimentos? Como reconstruir o que o tempo pôs a perder e que agora é uma breve e fugaz reminiscência, mascarada pelas teias do fato, pela traição reconstrutora da memória? Para se valer novamente de Eduardo Mocarzel, “o 'real' precisa de uma construção dramatúrgica para irradiar uma 'verdade' documental”. A objetividade do assunto concreto que será relatado não perde em verossimilhança simplesmente por ser tratado com sensibilidade, ou por meio de recursos dramáticos. Em outras palavras, está claro que se trata de uma obra de autor, historicamente determinada. O documentário, ao ressignificar as suas fontes por meio da reelaboração artística, transforma-se, ele mesmo, em outra fonte – uma fonte audiovisual específica.

Lúcia Murat, de maneira inovadora, encontra a sua própria linguagem, e usa, como instrumento mais interessante, a projeção da imagem, ora para a composição cenográfica, ora para a interação viva com os personagens. Caio Blat, ao comentar sobre a experiência da sua interação com a projeção, fala em uma imagem imersível, que atravessa o corpo do ator. Este mergulho na paisagem projetada produz possibilidades de atuação no intervalo compreendido entre projeção e captação da imagem, imiscuindo um em outro. Como escreveu o crítico Carlos Alberto Mattos:

Lúcia criou um aparato performático em que o ator recebe sobre o corpo e interage ludicamente com a projeção das imagens. Ou seja, o que usualmente seria linearidade e justaposição vira simultaneidade e sobreposição”.

O momento em que os dois Heitores têm as falas sobrepostas conduz a um dos takes mais instigantes do filme, ora pela atuação do ator-elenco Caio Blat, ora pelo absoluto carisma do irmão da diretora, ora pelo mérito já referido da montagem. O efeito é intoxicante, e a fantasia psicodélica, o espírito beatnik e quase niilista, e a radicalidade de Summertime de Janis Joplin embalam o espectador rumo a uma viagem interior. E qual o papel das drogas para a viagem a que Heitor se propõe? Um papel essencial.

Diante de uma realidade cumulada de extremos, diante da violência de Estado, como reagir? Haveria um sentimento de culpa no caçula ao conhecer o mundo enquanto a irmã estava encarcerada? O receio de que o prumo de sua liberdade fosse recebido pela irmã como uma ofensa a seu status de prisioneira seria um dos motivos pelos quais não lhe escrevia cartas com tanta frequência? Como conviver espremido entre dois abismos – de um lado, o diagnóstico de sua loucura privada e, de outro, a convulsão do seu tempo, dois monstros assombrosos?

As drogas, principal lubrificante social das interações humanas, presentes em quase todas as atividades festivas e religiosas, como recorda o historiador Henrique Carneiro, parecem ter sido colocadas diante do viajante como uma forma eficiente de acesso à realidade e de amenizar o contato com a vida. Heitor as usa, para utilizar a expressão do professor de História, como um “psicoscópio”: um instrumento que permite à alma observar a si por uma lente de aumento – papel semelhante talvez desempenhem as artes, entre as quais o cinema, a meditação, as religiões, ou as práticas lúdicas. Maconha, haxixe, zero-zero. Contudo, cobra-se um preço pela desmedida, e a prudência não é característica do tempo recortado pela obra dos Murat.

Heitor escreve de uma maneira convulsiva em determinados momentos de sua odisseia particular. Pratica a arte epistolográfica, fazendo o relato do viajante, do andarilho, construindo uma geografia das ideias em torno de sua obsessão indefinida. Deseja-se saber mais sobre ele, de vê-lo por mais tempo estampado na tela. Conforme a viagem prossegue, somos João Moreira Salles se lamentando de ter editado Santigo, de não tê-lo deixado falar o que quisesse por um tempo maior: deseja-se ver mais da figura canhestra e carismática de Heitor, de sua vida de absurdos, de sua prisão, de suas andanças, da sua radicalidade sem limites que colhe tudo aquilo que a vida lhe oferece de presente.

Não é um road movie documental; é algo bastante diferente. Retrata a mesma época de “O que é isso companheiro?” de Bruno Barreto de outra perspectiva, e é impossível não fazer o paralelo com o excelente “Diário de uma busca” de Flávia Castro (2010). E por que mais um filme sobre a ditadura militar brasileira, ao lado de “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende (2006), “Vlado: 30 anos depois”, de João Batista Andrade (2005), “Batismo de sangue”, de Helvécio Ratton (2007), entre tantos outros? Seria uma postura reflexiva do cinema brasileiro do início do século XXI para tentar entender, pelos mecanismos nem sempre racionalizados da arte, atitudes irracionalizáveis cometidas em um período de exceção? Seria uma maneira delicada de se aproximar de um ponto lacunoso da história ao qual foi negado o pleno e efetivo exercício do direito à memória?

O caçula encerrou sua viagem na Índia, aos 28 anos, quando Lúcia já conhecia a anistia no Brasil, encetando os anos setenta à forma de uma gangorra: liberdade ausente, liberdade total. Confidencia ele ter dado a volta ao mundo duas vezes, e que não se deve fazer isso; perde-se a noção do tempo. Assim como no mito adâmico, Heitor adverte que comer a maçã envolve um preço, pois o conhecimento não pode conviver com a inocência. Porém, em certas situações, comê-la é preciso e necessário: para alimentar a alma; para refletir sobre o passado.

Leonardo Branco



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+ comentários + 1 comentários

18 de maio de 2012 às 14:35

Críticas (profissionais) do filme no site da Abraccine: http://abraccine.wordpress.com/2012/05/18/a-longa-viagem-de-lucia-murat/

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